Mulheres negras usam a música como instrumento de luta

Artistas apontam como gênero e raça são determinantes no acesso à educação, mercado de trabalho, reconhecimento e representatividade profissional

“Existindo e existindo nesse lugar eu já estou lutando contra o sistema machista e racista. Existir como violinista, negra, mãe solo e exercer minha profissão com muito esmero, esbanjando talento e muita musicalidade é meu instrumento de luta”. O relato da violinista Jacqueline Lima é um exemplo de como a mulher negra é marginalizada: existir é – de fato – resistência.

Morenna, nome artístico de Stefany Senna Kulnis, cantora capixaba pop com mais de 45 mil ouvintes mensais no Spotify, também sente na pele essa realidade: “Não só no cenário musical, a gente como mulher encontra um desafio muito grande no mercado de trabalho em geral. Como mulher preta, o desafio é triplicado.”

As estatísticas corroboram a visão de Jacqueline e Morenna. Segundo estimativa da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2021/IBGE, elas são 32% da população capixaba e representam 64% das mulheres no estado. Entretanto, são minoria no mercado de trabalho formal. Enquanto a taxa de desemprego geral é de 12,7% e das mulheres brancas é de 10,3%, 19,8% das mulheres negras amargam a falta de trabalho.

Educação e oportunidades

Morenna destaca que a falta de oportunidades está, muitas vezes, ligada à dificuldade de acesso à educação. “É preciso haver uma reeducação da população em relação a contratar mulheres negras. Mas além disso, é preciso também oferecer cursos profissionalizantes que vão ajudar a mulher negra a se sustentar e encerrar processos de violência por conta da falta de liberdade econômica. A mulher negra independente é forte. A mulher negra acaba sendo forjada a ser forte.”

Parte do problema, de fato, tem sua raiz no acesso à educação. A Pnad dá conta de que a população capixaba tem 8,2 anos de estudo em média. Mulheres brancas, 9,2 anos. As negras, apenas 7,9.

O problema não termina ao ter um trabalho. A mulher negra também ganha menos. Mulheres brancas recebem em média R$ 2.358 no estado. As negras, R$ 1.521. Se a disparidade entre mulheres é grande, maior ainda é a diferença entre gêneros. A média salarial dos homens no Espírito Santo é de R$ 2.527. Os dados, de 2019, são do Observatório MulherES, criado pelo Instituto Jones Santos Neves.

Ainda que o machismo seja colocado de lado, a disparidade entre mulheres brancas e negras impressiona. Segundo informações do Observatório MulherES, em 2021, das 1.086 mulheres capixabas que ocupavam cargos de liderança no serviço público estadual, apenas 40 eram negras.

Duplo preconceito

A sambista Monique Rocha destaca que, no cenário musical do gênero, o machismo é mais proeminente do que o racismo, mas os dois ainda coexistem. “Ser mulher negra no samba é natural porque o samba é negro. O cenário musical capixaba como um todo é machista. Isso não deveria acontecer, já que muitos momentos históricos do samba foram protagonizados por mulheres. Na década de 70, Clara Nunes foi a primeira artista de samba a vender mais de 100 mil cópias de discos. Colegas cantoras, instrumentistas, compositoras sentem o mesmo.”

A sambista reforça a ressalva de que, mesmo com a raiz negra, o racismo persiste. “Vemos que quem mais tem visibilidade na música é quem tem o padrão europeu, branco. Mesmo o samba tendo raiz negra”, lamenta.

A reflexão sobre o assunto está presente na música Sou Negro, interpretada por Monique. “Vim em navios negreiros pelos sete mares/ Vim acorrentado/ Hoje liberto as correntes daquele que um dia me aprisionou/ Trago na pele a cor dos meus ancestrais que eram escravizados/ Mesmo nos dias de hoje essa escravidão ainda não acabou.”

Não só na música o problema é perceptível. Adriana Silva, representante do Fórum Nacional de Mulheres Negras, afirma que, de acordo com pesquisas, apenas 3,7% dos apresentadores são negros. “Em valores absolutos, de todos os analisados, foram apenas 10 apresentadores negros contra 261 brancos. De acordo com a Pnad de 2014, organizada pelo IBGE, 53% da população brasileira é de pretos ou pardos”.

Mesmo os negros que estão na TV ainda sofrem para ocupar todo tipo de espaço. “Apresentadores negros estão majoritariamente em programas culturais e de entretenimento. Nos casos analisados, 80% dos negros estavam em programas deste tipo e 20% protagonizavam programas de caráter religioso. Na programação jornalística, educativa e infantil não figurava nenhum apresentador negro”, lamenta Adriana.

Se os negros sofrem, as mulheres negras sofrem ainda mais. Jacqueline diz também já ter sentido na pele o preconceito. “Em alguns momentos, não sempre, encontrei sim resistência. Tive que estudar muito, me preparar muito e estar sempre muito acima da média para ocupar os lugares que ocupei como chefe de naipes ou spalla da orquestra. A música clássica é um cenário bem masculino e bem branco. A maioria das pessoas que fazem parte desse universo é de homens brancos. Como mulher negra, sou minoria”, observa a violinista.

“É uma luta muito grande para as pessoas conseguirem nos visualizar como queremos ser vistas e respeitarem nosso trabalho. É muito difícil ter o reconhecimento pelo trabalho que fazemos pela gente, pela sociedade, pela cultura e pela arte. Ter esses créditos é ainda um processo muito lento”, lamenta Morenna.

Violência

Infelizmente, as dificuldades das mulheres negras não se restringem ao campo profissional e financeiro. São elas as principais vítimas de violência.

Em 2021, 107 mulheres foram vítimas de homicídio no Espírito Santo. Dessas, 80 eram negras (74 pardas e seis pretas), ou seja, 74,8% das vítimas eram mulheres. Os dados são do Observatório da Segurança Cidadã do Instituto Jones Santos Neves (IJSN).

Adriana Silva destaca que, historicamente, as mulheres negras vivem em situação de maior vulnerabilidade social. “Isso aumentou com a pandemia, que ocasionou uma perda brutal de renda. Isso desestabilizou muitos lares e, forçosamente, muitos casais passaram a conviver por muito mais tempo numa situação precária. Tem também a questão do alcoolismo e outras drogas que muitas vezes são usadas como refúgio. Com a saúde mental abalada, muitos homens ficam suscetíveis a praticarem violência contra as próprias companheiras.”

Toda a marginalização social, como era de se esperar, gera efeitos na saúde mental da população feminina negra no estado. Segundo dados do Observatório MulherES, do IJSN, em 2019, 29 mulheres não negras morreram no Espírito Santo por lesões autoprovocadas. No mesmo período, 40 mulheres negras cometeram suicídio.

Políticas públicas

No Dia Estadual da Mulher Negra, comemorado em 25 de julho, elas enxergam um longo caminho a ser percorrido. “Falta tudo, não só aqui, mas no Brasil todo. As mulheres negras continuam sendo as que mais sofrem violência doméstica e obstétrica, além de receberem os menores salários”, exemplifica Monique.

Jacqueline também percebe a falta de suporte e destaca a dificuldade na área cultural. “O que temos de apoio nos projetos para negros ainda é muito primitivo, é um começo. O apoio governamental é fundamental para continuarmos exercendo nossas profissões artísticas. “Eu mesma tenho um projeto novo, o quarteto de formação clássica e erudita Zuri, formado por mulheres pretas. É muito difícil tirar as coisas do papel. Com apoio, o caminho seria menos árduo.”

Adriana Silva observa que as políticas de assistência social, por meio dos Centros de Referência de Assistência Social (Cras), são as que melhor funcionam, mas que há muito a ser feito. “Falta investimento em capacitação profissional, aumento do número de creches em período integral, mais casas abrigo para acolher a mulher vítima de violência, aumento do número de delegacias especializadas da mulher, e também uma delegacia especializada em crimes raciais e intolerância religiosa.”

Representatividade

“As pessoas pretas precisam se ver nos lugares, nos palcos, na TV. Na minha época, eu não via uma violinista muito famosa preta igual tinha brancas”, destaca Jacqueline.

A violinista conta que já sentiu na prática os efeitos da representatividade feminina e negra em espaços há muito tempo negados. “Eu já vi muitas meninas pretas novas de projetos sociais que iam ao concerto porque eu estava lá. Elas esperavam eu descer do palco para me cumprimentar e falar comigo porque elas se viam ali. Viam que no futuro elas poderiam estar ali, ocupando aquele lugar.”

É com esse mesmo pensamento que Monique criou seu mais recente projeto, “Sou Negro”, que trata da importância da presença negra em todas as áreas da sociedade: “Representatividade é tudo. Eu acredito na arte como instrumento de transformação. Todos os meus projetos estão ligados a questões sociais. Seja o machismo, racismo e a intolerância religiosa. A arte tem a função de fazer pensar, trazer a reflexão”.

A sambista destaca ainda a importância da representatividade em todas as áreas da sociedade para a nova geração. “A arte, a cultura e o esporte são áreas em que nós, negros, já estamos, mas não vemos tanto na medicina, na área jurídica, na área de tecnologia. Queremos estar em todos os espaços.”

Morenna concorda com as colegas de profissão. “Quando não vemos mulheres negras em papéis importantes, em cargos de diretoria de empresas, de CEO, de técnicas, de professoras, de líderes, grandes artistas, jornalistas… A gente não tem referências. Eu cresci com poucas referências na mídia. Acaba que a gente não se reconhece nos corpos e por isso não consegue se inspirar. Precisamos ter referência de onde podemos chegar se tivermos oportunidade. Não é só questão de trabalho e merecimento, mas de haver oportunidade.”

Com informações de Gabriela Knoblauch/Ales 

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